Numa quinta algures em Portugal o Jornal de Angola entrevistou aquele que foi o segundo homem da hierarquia da PIDE em Angola e que fundou os “Flechas”.
Depois da “Revolução dos Cravos” como especialista em guerra subversiva
foi trabalhar para o regime
de Ian Smith no Zimbabwee depois para as Forças de Defesa da África do Sul na
altura em que estas começaram a organizar e a coordenar na Jamba e na faixa de
Caprivi as actividades das forças da UNITA que interessavam à sobrevivência do
regime de apartheid. O operacional da PIDE conta toda a sua história.
Óscar Cardoso foi inspector-adjunto da PIDE/DGS. Era o número dois da
organização em Angola.
Jornal de Angola – Foi para Angola como militar ou já ao serviço da
PIDE?
Óscar Cardoso – Eu era um homem de confiança do regime e a PIDE soube que o director
da polícia em Angola, São José
Lopes, estava metido numa conspiração com a Rodésia e a África do Sul para
proclamarem a independência do território. Com São José Lopes estavam pessoas
com grande poder económico na província. Era preciso travar aquilo. Fui para
Luanda com essa missão. Nessa altura já era inspector.
JA – Conseguiu travar essa
conspiração?
OC –
A minha missão era secreta, mas São José Lopes soube tudo ainda eu não tinha
desembarcado em Luanda. Por isso, quando cheguei, mandou-me para o Cuando Cubango alegando que havia movimentos
subversivos na região que era preciso travar. Quis ver-se livre de mim,
rapidamente. Na verdade as forças do MPLA usavam o norte do Cuando Cubango para
se infiltrarem no planalto central e o Savimbi queria fazer a guerrilha naquela
zona. Eu estudei antropologia na Escola Colonial e interessei-me pelos khoisan,
os chamados bosquímanos. Conheci-os ao vivo. Quanto à conspiração, eles pararam
na altura mas nunca abandonaram o projecto. Logo a seguir ao 25 de Abril,
retomaram-no.
JA – O que concluiu com os
seus estudos?
OC –
Os bosquímanos foram empurrados para os locais mais inóspitos e por isso
odiavam todos os que não eram da tribo. Verifiquei que eram pisteiros espantosos. Liam os rastos como nós lemos um livro.
Sabiam se as pegadas eram de homem ou mulher, se iam carregados ou não. Um dia
até me disseram que a pista era de uma mulher grávida. O administrador Amaral
Pontes tinha uma grande paixão pelos bosquímanos. Chamavam-lhe Tata Kun. Um dia
decidimos fazer deles uma força contra os grupos da UNITA que queriam
implantar-se no Cuando Cubango.
Como as suas armas eram os arcos e flechas, pus-lhes o nome de “Flechas”.
JA – A UNITA foi criada pela
PIDE?
OC – Não, a UNITA foi criada
pelo Savimbi e mais alguns companheiros, que receberam treino político e
militar na China. Nós conhecíamos o perfil
de todos e quando se instalaram na Frente Leste fomos estabelecendo contactos.
Eles estavam a ser muito úteis porque combatiam as forças do MPLA. Mas depois
infiltraram-se na zona do Munhango e começaram a incomodar a actividade dos
madeireiros. Nessa altura fizemos o que qualquer força de inteligência militar
faz: estabelecemos contactos com Savimbi e os seus oficiais.
JA – Está a falar da “Operação
Madeira”?
OC–
Exactamente. O pessoal da PIDE e do comando da Frente Militar Leste começou a
estabelecer contactos com Savimbi e os seus oficiais. Conseguimos resolver o problema dos madeireiros. Logo nos
primeiros contactos verificámos que o Savimbi tinha muito gosto em trabalhar
connosco. O general Bettencourt Rodrigues, um militar extraordinário, deu luz
verde e a UNITA passou a combater ao lado das tropas portuguesas.
JA – Quem fez os contactos
com a UNITA no Munhango?
OC –
Alguns nomes são públicos, mas eu não vou repeti-los. Por uma questão de ética
só dou eu a cara. E refiro o senhor general Bettencourt Rodrigues porque ele nunca escondeu o seu papel na Operação
Madeira. O Savimbi estava cheio de vontade para combater as forças do MPLA e
nós fizemos-lhe a vontade.
JA – Savimbi fez alguma
exigência para lutar ao lado das tropas portuguesas e dos Flechas da PIDE?
OC –
Fizemos um acordo, ele combatia os guerrilheiros do MPLA e nós dávamos em troca
armas, apoio logístico e médico. O Savimbi esteve várias vezes internado no Hospital do Luso (Luena). Ele tinha
problemas de saúde que se agravaram mais tarde. Recebeu tratamento várias vezes
num hospital da África do Sul que tinha uma área secreta, destinada
exclusivamente ao pessoal da UNITA.
JA – Depois da “Operação Madeira” a UNITA fez operações contra a tropa
portuguesa?
OC –
Fez algumas, para limpar a imagem. Quando se soube que Savimbi estava do nosso
lado, perdeu prestígio em África. E ele queria mostrar que eram mentiras para o prejudicar. Fez uma operação que quase me
custou a vida. Mas Deus salvou-me.
JA – Não me diga que Deus
estava ao lado da PIDE?
OC – Pensem o que quiserem, mas
eu fui salvo por Deus. Quando os comandantes Sachilombo e Pedro foram para Gago
Coutinho, algum tempo depois
começaram a circular notícias que davam a UNITA como uma organização ao serviço
da PIDE. Então o Savimbi, que era muito traiçoeiro, resolveu fazer uma operação
para limpar a imagem negativa. Armou-me uma cilada. Queria matar-me, matar um
coronel da Força Aérea da África do Sul e o major Sachilombo.
JA – O que aconteceu?
OC –
O Savimbi mandou dizer que queria mandar um grupo grande de guerrilheiros para
nos ajudar na III e na IV Região do MPLA. Disse que o comandante Nzau Puna ia comandar esses grupos. Montámos a
Operação Viragem e tratámos de todos os pormenores. O ponto de encontro era
perto de Cangamba. Nós mandámos Flechas por terra em direcção ao local. Eu e o
major Sachilombo fomos num helicóptero sul-africano, pilotado por um coronel.
Aterrámos a cinco quilómetros do objectivo, num pequeno planalto, como estava
previamente combinado. Veio ao nosso encontro um homem andrajoso, mas com as
mãos e as unhas bem tratadas. Fiquei desconfiado com isso.
JA – Retiraram da zona?
OC –
Desconfiei e manifestei as minhas desconfianças ao major Sachilombo. Mas
decidimos acompanhar aquela figura estranha. Dois quilómetros à frente, encontrámos os nossos Flechas. Estavam todos
sem armas. Disseram que os oficiais da UNITA lhes pediram para guardarem as
armas porque estávamos numa operação de amizade e não fazia sentido andarem
armados. Fiquei ainda mais desconfiado. O guia indicou-nos um morro a cerca de
dez quilómetros. Era lá que estavam os homens da UNITA e o Savimbi. Nesse
momento o major Sachilonmbo chamou-me à parte e disse para sairmos
imediatamente dali. Dissemos aos homens para se dispersarem e esperarem a
chegada do helicóptero.
JA – Como escaparam?
OC –
Partimos apressadamente para o helicóptero e quando levantámos voo pedi ao
piloto para sobrevoar o morro onde estava Savimbi e os seus homens. Mas o piloto disse que tinha pouco combustível e era
melhor regressar a Cangamba para abastecer. Chegámos a uma hora que já não dava
para regressar. No dia seguinte, ao nascer do sol, partimos para o local.
Estava tudo limpo, mas sobre o morro caía uma chuva torrencial. Não se via
nada. Demos algumas voltas até que o nosso radiotelegrafista em terra nos disse
que quase todos os Flechas tinham sido mortos pela UNITA. Disse-lhe para
desligar o rádio e esconder-se. Montámos uma operação de resgate. Os Flechas em
terra tinham sido esquartejados. Foi horrível. Se não fosse aquela chuva hoje
não estava aqui.
JA – Acabaram aí as relações
com a UNITA?
OC –
Continuaram, mas quisemos saber o que tinha acontecido. Os seus homens disseram
que o Savimbi decidiu montar a Operação Baile para limpar a imagem da UNITA. Queria apresentar a minha cabeça, as do
major Sachilombo e do coronel sul-africano. Além disso ficava com o helicóptero
como troféu. Assim provava que nada tinha a ver com a PIDE e ainda acusava os
portugueses de estarem aliados à África do Sul. Dizer ao mundo que tinha morto
em combate o fundador dos Flechas era um grande trunfo. E fazia o papel de
justiceiro em relação ao major Sachilombo.
JA – Essa foi a única
operação contra as forças portuguesas?
OC – Ainda fizeram mais uma ou duas operações
contra as forças armadas portuguesas, sempre para mostrar que a UNITA lutava
contra nós. Eu alertei para este
comportamento, mas nada pude fazer quando, depois do 25 de Abril, a
inteligência apresentou Savimbi como o “muata da paz” e a UNITA como o “movimento
dos brancos”.
JA – Ninguém o quis ouvir?
OC –
Não, eu estava de licença graciosa em Portugal e apanhei lá os acontecimentos
do 25 de Abril. Perdi os contactos e não pude agir. Aquela ideia de fazer do Savimbi o grande dirigente angolano da paz foi
um erro trágico. Perderam os angolanos e os portugueses. Depois fui preso no
Forte de Peniche. Estive lá dois lados. Comandei o forte e depois fui
prisioneiro. Mas nunca ninguém me tocou com um dedo. Só quiseram destruir-me
psicologicamente. Resisti.
JA – A PIDE tinha infiltrados
nos movimentos de libertação.
OC – Sim, nós tinhamos e eles também tinham pessoas
infiltradas nos nossos serviços.
JA – Depois do 25 de Abril
foi julgado em Tribunal Militar?
OC – Fui julgado e na minha folha de serviços
constavam relevantes serviços prestados à pátria, no Exército, na GNR e na PIDE/DGS.
Apanhei dois meses de prisão por não
me ter apresentado semanalmente no posto da GNR, como tinha sido determinado
pelo Tribunal civil. Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril soube que a UNITA
tinha torturado e assassinado o Soba Matias no Cuando Cubango. Fiquei em
choque. Ele era um valioso combatente ao serviço de Portugal.
JA – Quem era o Soba Matias?
OC –
Um grande homem. Um dia foi ter comigo ao posto da PIDE em Serpa Pinto
(Menongue) e disse que andavam homens da UNITA a fazer mal ao povo. Pediu-me oito armas para ir apanhá-los. Confiei nele
e entreguei-lhe as armas. Apanhou os guerrilheiros da UNITA. Desde então, foi
um combatente extraordinário. Depois do 25 de Abril os homens da UNITA foram à
sua aldeia e mandaram-no arriar a bandeira portuguesa. Ele recusou.
Torturaram-no até à morte e esquartejaram-no para servir de exemplo ao povo.
Foi terrível.
JA – Mesmo sabendo disso, foi
trabalhar com Savimbi na África do Sul?
OC –
Eu tive de fugir de Portugal. Passei 730 dias preso em Peniche e quando saí em
liberdade condicional, participei em algumas operações do ELP e do MDLP. Fui denunciado e os revolucionários queriam
prender-me outra vez. Quando o autocarro se atrasa 15 minutos ficamos logo
nervosos. Eu passei 730 dias da minha vida no Forte de Peniche. Não queria
ficar preso nem mais um minuto. Contactei os meus amigos da Rodésia e fui para
lá. Saí de Portugal clandestinamente e em Madrid os meus amigos do MDLP
arranjaram-me um passaporte. Eles tinham muitos passaportes, em branco. Tive que
arranjar um nome falso.
JA – Como passou a chamar-se?
OC –
Rogério Ramon Pinto de Castro. Cada nome destes correspondia ao meu pseudónimo
nas organizações a que pertencia: Exército de Libertação de Portugal (ELP), Movimento Democrático de Libertação
de Portugal (MDLP), Frente de Libertação dos Açores (FLA) e Frente de
Libertação da Madeira (FLAMA). Preenchemos o passaporte e um amigo fez um
carimbo com uma batata para parecer verdadeiro. Assim embarquei para Salisbúria
(actual Harare, capital do Zimbabwe).
JA – Em Portugal participou
nos atentados do MDLP e do ELP?
OC –
Ajudei a fazer atentados. Mas só atacámos as sedes do Partido Comunista. Ainda
tentámos salvar Portugal, mas quando precisámos de um presidente, o general Spínola fugiu para o Brasil. Percebi logo
que aquilo não ia dar nada.
JA – António Spínola não era
o vosso chefe?
OC –
Nunca foi. O ELP foi fundado pelo coronel Santos e Castro. O MDLP foi criado
pelo comandante Alpoim Calvão. A FLAMA tinha pouco peso e a FLA não ia a lado nenhum. A CIA pediu-me para ir aos
Açores ver se havia possibilidades da independência do arquipélago. Mas isso só
era possível se derrotássemos os comunistas. Moscovo estava por trás do 25 de
Abril. Eles queriam Portugal na órbita comunista por causa das colónias. Mas
percebi logo que não íamos a lado nenhum. Então decidi oferecer os meus
préstimos à Rodésia.
JA – Trabalhou com a CIA?
OC –
Sim, trabalhei mas só depois do 25 de Abril. Fui aos Açores ver se havia
possibilidade de declarar a independência do arquipélago. Os meus contactos foram muito
importantes, mais tarde. O meu amigo Daniel Chipenda foi abandonado pelos
americanos depois da independência de Angola e eu meti-o na CIA.
JA – Antes de irmos à
Rodésia: qual foi o papel de Mário Soares no Verão Quente?
OC –
Serviu-se de nós. Ele queria poder a todo o custo. Apoiou os operacionais do
ELP e do MDLP, trabalhou com a CIA, fez tudo o que Carlucci lhe mandou fazer. Quando conseguiu o que queria,
abandonou os amigos. É muito parecido com o Savimbi. Por isso, sou capaz de me
sentar à mesa com todos, menos com os socialistas.
JA – Qual foi o seu papel na
Rodésia de Ian Smith?
OC –
Organizei as forças especiais, para enfrentarem os guerrilheiros da ZANU. Eu
ganhei muita experiência em Angola e acabei por criar “Flechas” na Rodésia. Um ano depois, fui-me embora. Eles
tratavam-me como se fosse um criado. Nunca fui tão maltratado. Meti-me num
avião e aterrei em Joanesburgo. Viram o apelido Castro no meu passaporte, o meu
rosto barbudo e disseram que era um espião cubano. Pedi um rand para telefonar
ao brigadeiro Ben Roos. Recusaram. Ofereci dez dólares rodesianos por um rand.
Nada. Depois veio um oficial, ouviu a minha história e deu-me um rand para
telefonar. Falei com o brigadeiro e ele mandou logo os seus homens tirar-me do
aeroporto.
JA – Foi assim que ficou a
trabalhar com os sul -africanos?
OC –
A minha ideia era essa. Ben Roos disse-me que a África do Sul estava a preparar
a batalha final contra Angola e que iam ganhar. Convidou-me para ser o oficial superior de ligação com os homens
da UNITA e do Batalhão Búfalo. Aceitei. Mas alertei imediatamente o brigadeiro
para a personalidade do Savimbi. Ele já sabia tudo . Foi assim que fui parar a
Oshakati, onde montei o comando. E comecei a trabalhar com o pessoal da UNITA.
JA – Quem era o seu contacto?
OC –
Era o senhor Isaías Samakuva, um
homem muito apagado e extremamente limitado. Tinha pouco rasgo. Não é fácil
trabalhar com pessoas que não
percebem nada do que lhe dizemos. Expliquei-lhe que a África do Sul queria que
a UNITA servisse de tampão aos avanços da SWAPO. Mas o Savimbi tinha-lhe dito
que a UNITA estava a lutar contra os cubanos e os russos e ele repetia esse
discurso por tudo e por nada. Mas não tomava qualquer decisão. Quando vejo que
hoje é líder da UNITA, fico admirado. Ele
não serve para liderar seja o que for. Não tem qualidades.
JA – Nesta altura falou com Jonas Savimbi?
OC –
Muitas vezes. Mas ele nada tinha a ver com as operações, os sul-africanos não
lhe davam confiança para isso. Em Oshakati e no Rundu só tratávamos de inteligência, de operações militares e de
sabotagens. O Savimbi era o político, nada tinha a ver com estas coisas. A base
militar principal era na Jamba. Os sul-africanos e os americanos criaram ali
aquela estrutura, grande em qualquer parte do mundo. Lá nada faltava. Mas eu
estava mais ligado à inteligência e às operações. No início, o objectivo era
travar a SWAPO. O Savimbi aceitou as regras, mas cedo mostrou que o seu único
pensamento estava no combate ao MPLA para um dia chegar ao poder em Angola.
Além de traiçoeiro, ele era de uma ambição sem limites.
JA – Qual era a sua missão?
OC – Fazia tudo. Vezes sem conta
fui levar armas e munições à fronteira. Transportei dezenas de feridos. Eles
eram retirados de Angola em bicicletas
e chegavam à fronteira num estado lastimável. Quase sempre tinham que ser
mandados para o Rundu. Quando o Hospital de Ondângua não respondia à gravidade
dos feridos, iam para Pretória, para o Hospital Voortekerhoogte. Ali os
serviços secretos criaram uma área só para o pessoal da UNITA. Ninguém tinha
acesso a essa zona. Médicos, enfermeiros, técnicos e pessoal de apoio eram
todos credenciados pelos
JA – A UNITA usava armas
sul-africanas?
OC –
Nem pensar. A África do Sul não podia arriscar tanto. Montámos um esquema
perfeito. Comprávamos armas de origem soviética à Hungria e a UNITA dizia que aquele material era apreendido às
FAPLA nos combates. Todas as armas eram soviéticas. Entregávamos o material em
Omungwelume, no Marco 14. Ali era o centro logístico. No Rundu tínhamos o
grande aeroporto onde chegavam os aviões carregados de material. Nesta altura,
também estava activo o Batalhão Búfalo, treinado pelo meu amigo Jan
Breytenbach, um grande militar sul-africano. E tínhamos Flechas do Cuando
Cubango. Hoje vivem algures na África do Sul, abandonados por todos.
JA – Na Jamba encontrou
aqueles políticos portugueses que iam ver Savimbi?
OC –
A Jamba era mais para mostrar a organização da UNITA e eu trabalhava como
operacional. Ali estavam todos seguros, os aviões da Força Aérea Angolana não tinham capacidade de ir lá bombardear e
regressar às suas bases. Os portugueses iam mais para tratar de negócios. Os
diamantes e o marfim fizeram muitos amigos à UNITA.
JA – Sabe o que aconteceu com
o avião de João Soares?
OC –
Claro que sei. O avião era de um grande amigo meu, Joaquim Silva Augusto,
comerciante no Rundu. Ele como piloto não era grande coisa. Carregaram os porões com pontas de marfim e com diamantes.
Levantaram voo, mas o Augusto não conseguiu aguentar o aparelho no ar. Foi
terrível, ficaram todos em mau estado. Foram transportados para o Hospital
Verwoerd, onde a minha mulher era enfermeira. Só sabíamos que o Augusto estava
gravemente ferido. A minha mulher foi imediatamente para o hospital, mas não
encontrou o Augusto, estava a fazer exames de Raios X. Os outros tinham os
olhos negros, estavam irreconhecíveis.
JA – Como soube que um dos
feridos era João Soares?
OC – A minha mulher soube que os feridos eram todos
portugueses. No dia seguinte já encontrou no hospital a mãe e a esposa de João
Soares.
Ele estava gravemente ferido. O nosso amigo Augusto, também. O tráfico
de diamantes e de marfim daquela vez correu mal.
JA – João Soares diz que isso
é invenção do Jornal de Angola.
OC –
O avião estava cheio de marfim e diamantes. Perguntem ao nosso amigo Augusto,
que ele confirma tudo. A UNITA roubava os diamantes em Angola e matava os elefantes. Depois os amigos iam à Jamba
buscar o material.
JA – É verdade que os
sul-africanos pediram a Mário Soares apoio à UNITA, em troca de lhe salvarem o
filho?
OC –
Desconheço. O Mário Soares não foi à África do Sul ver o filho ao hospital.
Maria Barroso esteve lá muitos dias. A esposa de João Soares também. É uma situação interessante.
Eu trabalhava com os sul-africanos na ligação com a UNITA. E Mário Soares
apoiava a UNITA em Portugal. Estávamos unidos no mesmo objectivo. Mas para mim,
esse homem foi o que de pior aconteceu à minha querida pátria.
JA – Pertencia às Forças
Armadas Sul-Africanas?
OC –
Trabalhei sempre com a inteligência militar. E sou coronel na reforma da Força
Aérea da África do Sul. Fui condecorado. Quando chegou a altura de ir para casa perguntaram-me se queria uma pensão mensal
ou se queria receber tudo de uma vez. Preferi o dinheiro todo. Deram-me 100.000
euros. Fui muito bem tratado na África do Sul. Participei nas negociações que
conduziram à retirada das nossas tropas de Angola.
JA – Como oficial das forças
sul-africanas?
OC –
Sim, nessa condição. Era perito em inteligência militar. Reuní-me com os
oficiais angolanos e tratámo-nos todos com respeito. Do lado angolano estava gente com muito valor.
Retirámos as nossas forças para além do paralelo determinado. Mas a guerra
através da UNITA continuou até à Batalha do Cuito Cuanavale. Foi a batalha
final. Os angolanos saíram vitoriosos. Tenho de reconhecer que foram heróicos,
bateram-se pela pátria deles, como ninguém. São os vencedores.
JA – Tem alguma pensão do
Estado Português?
OC –
Tenho uma pensão, porque servi Portugal no Exército, na GNR e na PIDE/DGS. Fui
condecorado e louvado. Mas agora andam a cortar-me a pensão. Estou muito triste com o presente de Portugal e
apreensivo quanto ao futuro. Há demasiada corrupção. Deve ser o país mais
corrupto do mundo. Depois as manobras do super capitalismo estão a lançar as
pessoas na pobreza.
JA – Como vê as relações com
Angola?
OC – Também estou apreensivo. A
maneira como tratam Angola é revoltante. Há situações de autêntica
irresponsabilidade. Mas Angola e Portugal
estão condenados a ter boas relações. Espero que todos os problemas sejam
ultrapassados. A presença da China em Angola também me preocupa. Se eles não
tivessem ambições expansionistas, não tinham um exército tão grande. Aqueles
milhões de homens em armas não são apenas para as paradas.
Fonte: JA
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